Em decisão histórica, o Tribunal Feminista Internacional instalado durante a Cúpula dos Povos Rumo à COP 30 analisou nove casos do Sul Global sobre como as crises política, econômica, social, de segurança e climática impactam as vidas e os direitos de mulheres e dissidentes sexuais. O modelo capitalista extrativista, racista e patriarcal foi condenado e agora Estados e corporações serão denunciados à Corte Interamericana de Direitos Humanos por crimes contra a humanidade e violações dos direitos da natureza.
O Tribunal foi organizado pela Iniciativa Internacional de Mulheres sobre Corpos e Territórios, pela Articulação das Mulheres Brasileiras (AMB), pelo Grupo de Defesa de Mulheres e Mudanças Climáticas (Peru) e pela Coalizão Global para as Florestas (GFC), como ação desenvolvida a partir do eixo temático “Feminismo Popular e Resistência das Mulheres em Territórios” que mobilizou os movimentos, organizações e redes ao longo de 2024 e 2025.
No julgamento, realizado no dia 13 de novembro, na Tenda Plenária da Universidade Federal do Pará, foram analisadas nove denúncias feitas por mulheres e dissidentes da Palestina, Haiti, Saara Ocidental, Peru, Brasil, Venezuela, Chile e Pará brasileiro. Durante toda a sessão, os casos revelaram a amplitude da violência que atravessa os corpos, as vidas e os territórios de mulheres e dissidentes, em meio a crises políticas, econômicas, sociais, de segurança e climáticas.
As denúncias convergiram para o diagnóstico comum de que o modelo capitalista extrativista, racista e patriarcal segue aprofundando desigualdades e instaurando novas formas de colonização que se expressam tanto na captura dos territórios quanto na violação dos corpos. Então, a conclusão foi que cada um dos casos denunciados revela diferentes expressões de um mesmo sistema de opressões.
“Os casos apresentados por mulheres do Sul Global revelaram a interseção da violência de gênero, geopolítica, econômica, social, ambiental, racial, transfóbica e climática em seus corpos e territórios, seus impactos e sua resistência a uma ordem opressora contra a qual travam uma luta articulada por uma coexistência pacífica, sem discriminação, com justiça, em equilíbrio com a natureza e celebrando a diversidade”, diz um trecho da sentença.
O Tribunal foi presidido por Celia Xakriabá, líder indígena e deputada federal do Brasil. Compuseram a bancada de juízas Sophie Dowlar, da Marcha Mundial das Mulheres no Quênia, Uli Arta Siagian, ativista da Indonésia, Nazely Vardanyan, da Armenian Forests, e Marisol Garcia, líder indígena Kichwa da Amazônia peruana. A diversidade geopolítica das magistradas reforçou o caráter internacional e popular do julgamento.
As situações denunciadas foram tratadas como evidências de uma engrenagem global que combina racismo ambiental, violência de gênero, militarização, repressão política, exploração econômica e destruição ambiental. Para o Tribunal, essas violações formam um “continuum” que atravessa fronteiras e se intensifica com a crise climática, agravada pela omissão e pelo negacionismo de Estados com grande poder político e econômico.
Depoimentos revelam a teia de violências que atravessa o Sul Global
Os relatos apresentados ao Tribunal expuseram a interseção entre violência de gênero, invasão territorial, conflitos armados, crise climática, racismo, transfobia e destruição ambiental. Do Pará à Palestina, as mulheres e dissidentes sofrem, resistem às violações, ecoam os muitos gritos de dor e de esperança e seguem se organizando.
Assalah Abu Khdeir, da Palestina, denunciou o genocídio imposto pelo Estado de Israel contra seu povo, onde mulheres e crianças são as maiores vítimas da fome, da falta de atendimento médico e da violência militar. Pediu o direito de viver com paz e autonomia.
Do Haiti, Juslene Tyresias, da Via Campesina, relatou o avanço da violência física, psicológica e sexual provocado pela instabilidade política e pela atuação de gangues armadas. As mudanças climáticas aprofundam a crise e forçam o deslocamento de mulheres e meninas.
A saharauí Chaba Siny reivindicou o direito à autodeterminação do povo do Saara Ocidental e denunciou a repressão marroquina. Afirmou que não existe justiça climática quando há ocupação militar e cerceamento das liberdades políticas de mulheres.
Olivia Bisa Tirko, liderança indígena da Nação Chapra do Peru, acusou o Estado de pactuar com corporações responsáveis por ecocídio e violência contra defensores ambientais. Questionou por que três décadas de COPs foram incapazes de conter a crise climática.
Do Brasil, Beku Gogti, mulher Xikrin e integrante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração, relatou os impactos da contaminação dos rios causada pela Vale, que atinge especialmente gestantes e crianças de sua comunidade.
Cledeneuza Bizerra, quebradeira de coco babaçu do Pará, denunciou a destruição de modos de vida tradicionais e o avanço do agronegócio sobre áreas de uso comum. Reafirmou que as mulheres rurais alimentam o mundo e que não se come dinheiro.
A venezuelana Alejandra Laprea descreveu os efeitos devastadores do bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos, que precariza a vida das mulheres responsáveis pelo cuidado e aumenta sua vulnerabilidade à violência.
O caso da liderança mapuche Julia Chunil, desaparecida em 2024 enquanto defendia seu território de empresas do agronegócio, foi apresentado por María José Lubertino, que cobrou responsabilidade do Estado chileno por permitir que violações dessa gravidade ocorram.
Da Amazônia paraense, Melisandra, da Casa Cura, expôs a violência estrutural que atinge mulheres trans. Denunciou o ódio, a transfobia, o racismo religioso e a negligência do Estado brasileiro, país que lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans.
A escuta desses testemunhos, diante de uma plateia lotada, evidenciou que o neocolonialismo se apresenta hoje como projetos de investimento e ações climáticas que, na prática, desterritorializam povos e comunidades para garantir lucro a grandes corporações. As juízas destacaram que a omissão dos Estados é parte do problema e aprofunda a violação de direitos.
Veredito vai além de recomendações e exige reparações
Ao anunciar o resultado, as juízas destacaram que os perpetradores desses crimes são coletivos — Estados, corporações transnacionais e elites econômicas — e que as vítimas também são coletivas, pois atingem diretamente mulheres, dissidências, povos indígenas, comunidades negras, defensores de direitos humanos e organizações territoriais.
Por isso, o Tribunal optou por um veredito que, em vez de se limitar a recomendar medidas, estabelece diretrizes para uma atuação internacional contínua. Entre elas, estão a exigência de justiça financeira pelas violações sofridas, o pedido de reparações econômicas por ocupações ilegais, estupros, assassinatos, destruição ambiental e perdas culturais e espirituais, e a reivindicação de reconhecimento de Estados plurinacionais que incluam mulheres e minorias sexuais e de gênero no centro da tomada de decisões, das Nações Unidas às mesas de negociação climática.
O impacto da decisão também está na determinação de analisar casos emblemáticos em curso, como os da República Democrática do Congo, Sudão e Rio de Janeiro, todos marcados por situações de ecocídio, genocídio, feminicídio e múltiplas formas de violência estrutural. Para o Tribunal, reconhecer essas violações e responsabilizar os agentes envolvidos é condição indispensável para enfrentar um cenário global em que 158 milhões de mulheres vivem na pobreza e onde deslocamentos forçados, impactos de agrotóxicos e violência estatal ainda não são tratados como crimes que afetam diretamente a vida e a dignidade das populações mais vulneráveis.
O Tribunal chamou atenção para a atualização do neocolonialismo, que hoje se disfarça de investimentos em ação climática enquanto, na prática, promove a desapropriação de povos e comunidades para expandir frentes de exploração. Segundo as magistradas, essa dinâmica impede qualquer possibilidade de justiça climática, já que destrói florestas, desestabiliza territórios e expõe mulheres e corpos feminizados a violências que vão da fome ao assassinato.
No encerramento, a sentença reafirmou que defender mulheres é defender a vida na Terra. Ao declarar que um planeta sem mulheres é impossível, o Tribunal posicionou a luta feminista como eixo estruturante da disputa por justiça climática no Sul Global e inaugurou uma nova etapa de incidência internacional que agora seguirá para instâncias jurídicas e políticas em escala continental. A decisão, construída em Belém, ultrapassa o tempo da sessão e se afirma como um ponto de virada na denúncia global contra um modelo que trata corpos e territórios como zonas de sacrifício.
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